Eu estava em um dos
treinamentos do SEDEC (Seminário de Desenvolvimento Comunitário) no CADI
(Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral), quando uma das alunas nos
compartilhou que era cantora lírica antes de se converter a Jesus, mas
abandonara sua vocação assim que se tornou cristã. Seu pastor lhe orientou que
aquilo não era obra de Deus, e, portanto ela deveria parar. Um misto de
tristeza e revolta me invadiu, pensei no quanto o cristianismo dilacerou as
pessoas ao invés de torna-las inteiras para Deus. Pensei no poço de ignorância
no qual nos afundamos em nossa tentativa histórica de calarmos a voz do Cristo
vivo que liberta para transformá-lo em um ídolo tirano e insensível a
humanidade que ele mesmo criou. Fomos esterilizados culturalmente por uma
teologia equivocada, reducionista, mas que tem seus motivos históricos para
existir.
Apesar
desse cenário tão triste, aqui representado pela história dessa moça, mas que
se estende e se aplica a grande maioria dos evangélicos do nosso país. É
possível ter esperança em uma igreja culturalmente saudável e ao mesmo tempo
santa como deve ser, e essa possibilidade passa necessariamente pelo culto
racional, a reflexão dirigida e consciente da palavra de Deus e do nosso papel
e lugar no mundo enquanto cristãos. Vamos considerar alguns conceitos
primordiais para entendermos essa questão.
1.
Cultura;
um universo de sentido.
Ao
contrário do que podemos a princípio imaginar a necessidade que o ser humano
tem de intervir na realidade não é oriunda do pecado, mas foi implantada por um
Deus que sempre convidou o homem para coparticipar com Ele na criação e nos
Seus planos de modo geral. Quando Deus chama Adão para dar nomes aos animais e
cultivar o jardim Ele estava convidando o seu próprio ser criado para dar um
ponto de vista diferente do Dele próprio. Cultura
é o ponto de vista do ser criado, sobre aquilo que Deus lhe deu como casa. Observe
que nesse contexto não ha religião, não ha sacro e profano, ha simplesmente a
relação sincera entre um Deus maravilhoso que impulsiona seu ser criado a se
aventurar na interpretação da realidade que o cerca.
A
cultura, portanto, nasce exatamente nesse ponto, ela é a construção de um
universo de sentido construído pela linguagem, seja essa linguagem qual for
(fala, dança, ciência, tecnologia, agricultura etc). O homem é um ser tão
fantástico que ele foi capaz de criar um “universo” dentro de um “universo”
dado e isso estava nos planos de Deus desde o início.
E tomou o
Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.
Gênesis 2:15
Gênesis 2:15
Havendo, pois,
o Senhor Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus,
os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a
toda a alma vivente, isso foi o seu nome.
E Adão pôs os
nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo o animal do campo; mas para o
homem não se achava ajudadora idônea. Gênesis 2:19-20
E Deus os
abençoou, dizendo: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e
as aves se multipliquem na terra. Gênesis
1:22
O
“dar nomes e cultivar” pode ser entendido como batizar o desconhecido de
sentido. Nós fazemos isso o tempo todo quando, por exemplo, tentamos descrever
um sentimento para outra pessoa, ou quando descobrimos um novo tipo de vida,
quando tecemos teorias filosóficas ou políticas tudo o que estamos fazendo é
dando os nomes que consideramos mais apropriado a realidade que nos cerca.
a)
O
pecado
Quando
o homem prefere o conhecimento do bem e do mal em detrimento do seu
relacionamento pessoal com Deus ele se põe como sua própria bússola e como seu
próprio critério de interpretação. Esse deslocamento causa inevitavelmente uma
corrupção dos mecanismos de sentido com os quais o homem apreende a realidade;
a paz agora vai conviver com o medo, a cumplicidade agora vai conviver com a
acusação, a produção vai conviver com o suor e assim por diante. A partir desse
momento o universo de sentido criado pelo homem esta comprometido, mas não
necessariamente demonizado como a postura radical dos religiosos faz parecer.
Imagine que alguém tenha de fazer um auto retrato, mas tem 4 graus de miopia.
Sua obra não vai sair perfeita, mas os principais elementos ainda estão lá,
cores , por mais que estejam opacas, formas etc. Há também os que se
embrenharam em uma visão não só comprometido, mas também culturalmente rebelde
como é o caso de Ninrode e sua Babel. No entanto o importante é que
reconheçamos que Deus não foi expulso da cultura humana, Ele ainda está lá e
nós vamos entender como.
1.1 O Deus imanente
Tendo
em vista que a cultura é um universo de sentido criado pelo ser humano, podemos
entendê-la como um solo fértil de espiritualidade e da presença do Criador
porquanto na busca do sentido as pessoas acabam “esbarrando” em um Deus
presente.
E,
estando Paulo no meio do Areópago, disse: Homens atenienses, em tudo vos vejo
um tanto supersticiosos; Porque, passando eu e vendo os vossos
santuários, achei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO.
Esse, pois, que vós honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e
da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens; Nem
tampouco é servido por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa;
pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, e a respiração, e todas as coisas; E de um só sangue fez toda a geração dos homens, para habitar
sobre toda a face da terra, determinando os tempos já dantes ordenados, e os
limites da sua habitação; Para que buscassem ao Senhor, se
porventura, tateando, o pudessem achar; ainda que não está longe de cada um de
nós; Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como
também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração. Atos
17.22-28
A
partir dessa abordagem fantástica de Paulo com os Atenienses podemos entender
que Deus esta presente na revelação do Cristo, mas também está presente na
dúvida, na escuridão de quem tateia procurando por Ele. Você já experimentou
falar do evangelho para alguém confuso e em crise? Deus está lá na crise,
talvez como nunca esteve nos momentos de certeza! Deus está para a cultura como
a água está para esponja. Sendo o Senhor do céu e da terra ele segue firme
acima dos empreendimentos religiosos humanos, dos templos cristãos, das músicas
que carregam rótulos de religiosidade, da literatura que procura revela-Lo e
torna-Lo mais compreensível. Saiba que o Reino de Deus está por toda parte,
está nas esquinas, nas praças, nas festas populares e até da igreja
institucional! Ele é imanente no sentido de que irrompe no ambiente de busca
pelo sentido, por isso a categorização de cultura cristã e secular não dá conta
da questão, apesar de ser bem mais simples.
O interessante é que Paulo usa autoridades
culturais gregas para embasar seu argumento e aqui cabe um parêntese para os
cristãos; enquanto estamos enclausurados em nossos guetos religiosos,
desenvolvendo um submundo com fala específica, musica especifica e até roupas
especificas os poetas estão gritando por Deus lá fora, mas nós não os lemos por
que eles não são gospel! Paulo cita aqui Epiménides de Cnossos (século VI antes Cristo), mas provavelmente leu
essa citação em "Fenómenos",
obra de Aratos, poeta ciliciano do século III antes de Cristo. Em II Timóteo
4:13 Paulo pede para seu discípulo levar seus livros por que a cultura é
importante para o discípulo de Cristo!
Ponderações
Finais da primeira parte
Tendo em vista que Jesus
o Cristo é o Senhor de todas as coisas podemos considerar que seus discípulos
devem estar atentos aos significados das vozes que clamam na cultura e não
apenas isso, deve também falar a língua do povo de forma que seja inteligível.
A Cultura, enquanto universo criado de sentido é um ambiente fértil tanto para
manifestar, quanto para ouvir a voz de Deus e/ou as inquietações legítimas
humanas. O fato do pecado esta presente na cultura não deve nos afastar dela
assim como não nos afastamos do mercado de trabalho ou do lazer com a família
ou do trânsito etc. Jesus não nos tira do mundo, mas faz de nós discípulos seus
nesse mundo, portanto sigamos em frente falando uma língua cada vez mais
significativa e ouvindo, vendo e sentindo com cada vez mais sensibilidade e
coerência.