sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Sou um cristão na cultura e agora? Parte I

     Eu estava em um dos treinamentos do SEDEC (Seminário de Desenvolvimento Comunitário) no CADI (Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral), quando uma das alunas nos compartilhou que era cantora lírica antes de se converter a Jesus, mas abandonara sua vocação assim que se tornou cristã. Seu pastor lhe orientou que aquilo não era obra de Deus, e, portanto ela deveria parar. Um misto de tristeza e revolta me invadiu, pensei no quanto o cristianismo dilacerou as pessoas ao invés de torna-las inteiras para Deus. Pensei no poço de ignorância no qual nos afundamos em nossa tentativa histórica de calarmos a voz do Cristo vivo que liberta para transformá-lo em um ídolo tirano e insensível a humanidade que ele mesmo criou. Fomos esterilizados culturalmente por uma teologia equivocada, reducionista, mas que tem seus motivos históricos para existir.
Apesar desse cenário tão triste, aqui representado pela história dessa moça, mas que se estende e se aplica a grande maioria dos evangélicos do nosso país. É possível ter esperança em uma igreja culturalmente saudável e ao mesmo tempo santa como deve ser, e essa possibilidade passa necessariamente pelo culto racional, a reflexão dirigida e consciente da palavra de Deus e do nosso papel e lugar no mundo enquanto cristãos. Vamos considerar alguns conceitos primordiais para entendermos essa questão.

1.    Cultura; um universo de sentido.

Ao contrário do que podemos a princípio imaginar a necessidade que o ser humano tem de intervir na realidade não é oriunda do pecado, mas foi implantada por um Deus que sempre convidou o homem para coparticipar com Ele na criação e nos Seus planos de modo geral. Quando Deus chama Adão para dar nomes aos animais e cultivar o jardim Ele estava convidando o seu próprio ser criado para dar um ponto de vista diferente do Dele próprio. Cultura é o ponto de vista do ser criado, sobre aquilo que Deus lhe deu como casa. Observe que nesse contexto não ha religião, não ha sacro e profano, ha simplesmente a relação sincera entre um Deus maravilhoso que impulsiona seu ser criado a se aventurar na interpretação da realidade que o cerca.
A cultura, portanto, nasce exatamente nesse ponto, ela é a construção de um universo de sentido construído pela linguagem, seja essa linguagem qual for (fala, dança, ciência, tecnologia, agricultura etc). O homem é um ser tão fantástico que ele foi capaz de criar um “universo” dentro de um “universo” dado e isso estava nos planos de Deus desde o início.

E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.
Gênesis 2:15
Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome.
E Adão pôs os nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo o animal do campo; mas para o homem não se achava ajudadora idônea. Gênesis 2:19-20
E Deus os abençoou, dizendo: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas nos mares; e as aves se multipliquem na terra. Gênesis 1:22

O “dar nomes e cultivar” pode ser entendido como batizar o desconhecido de sentido. Nós fazemos isso o tempo todo quando, por exemplo, tentamos descrever um sentimento para outra pessoa, ou quando descobrimos um novo tipo de vida, quando tecemos teorias filosóficas ou políticas tudo o que estamos fazendo é dando os nomes que consideramos mais apropriado a realidade que nos cerca.

a)    O pecado

Quando o homem prefere o conhecimento do bem e do mal em detrimento do seu relacionamento pessoal com Deus ele se põe como sua própria bússola e como seu próprio critério de interpretação. Esse deslocamento causa inevitavelmente uma corrupção dos mecanismos de sentido com os quais o homem apreende a realidade; a paz agora vai conviver com o medo, a cumplicidade agora vai conviver com a acusação, a produção vai conviver com o suor e assim por diante. A partir desse momento o universo de sentido criado pelo homem esta comprometido, mas não necessariamente demonizado como a postura radical dos religiosos faz parecer. Imagine que alguém tenha de fazer um auto retrato, mas tem 4 graus de miopia. Sua obra não vai sair perfeita, mas os principais elementos ainda estão lá, cores , por mais que estejam opacas, formas etc. Há também os que se embrenharam em uma visão não só comprometido, mas também culturalmente rebelde como é o caso de Ninrode e sua Babel. No entanto o importante é que reconheçamos que Deus não foi expulso da cultura humana, Ele ainda está lá e nós vamos entender como.

1.1 O Deus imanente

Tendo em vista que a cultura é um universo de sentido criado pelo ser humano, podemos entendê-la como um solo fértil de espiritualidade e da presença do Criador porquanto na busca do sentido as pessoas acabam “esbarrando” em um Deus presente.

E, estando Paulo no meio do Areópago, disse: Homens atenienses, em tudo vos vejo um tanto supersticiosos; Porque, passando eu e vendo os vossos santuários, achei também um altar em que estava escrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Esse, pois, que vós honrais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homens; Nem tampouco é servido por mãos de homens, como que necessitando de alguma coisa; pois ele mesmo é quem dá a todos a vida, e a respiração, e todas as coisas; E de um só sangue fez toda a geração dos homens, para habitar sobre toda a face da terra, determinando os tempos já dantes ordenados, e os limites da sua habitação; Para que buscassem ao Senhor, se porventura, tateando, o pudessem achar; ainda que não está longe de cada um de nós; Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração. Atos 17.22-28


A partir dessa abordagem fantástica de Paulo com os Atenienses podemos entender que Deus esta presente na revelação do Cristo, mas também está presente na dúvida, na escuridão de quem tateia procurando por Ele. Você já experimentou falar do evangelho para alguém confuso e em crise? Deus está lá na crise, talvez como nunca esteve nos momentos de certeza! Deus está para a cultura como a água está para esponja. Sendo o Senhor do céu e da terra ele segue firme acima dos empreendimentos religiosos humanos, dos templos cristãos, das músicas que carregam rótulos de religiosidade, da literatura que procura revela-Lo e torna-Lo mais compreensível. Saiba que o Reino de Deus está por toda parte, está nas esquinas, nas praças, nas festas populares e até da igreja institucional! Ele é imanente no sentido de que irrompe no ambiente de busca pelo sentido, por isso a categorização de cultura cristã e secular não dá conta da questão, apesar de ser bem mais simples.
 O interessante é que Paulo usa autoridades culturais gregas para embasar seu argumento e aqui cabe um parêntese para os cristãos; enquanto estamos enclausurados em nossos guetos religiosos, desenvolvendo um submundo com fala específica, musica especifica e até roupas especificas os poetas estão gritando por Deus lá fora, mas nós não os lemos por que eles não são gospel! Paulo cita aqui Epiménides de Cnossos (século VI antes Cristo), mas provavelmente leu essa citação em "Fenómenos", obra de Aratos, poeta ciliciano do século III antes de Cristo. Em II Timóteo 4:13 Paulo pede para seu discípulo levar seus livros por que a cultura é importante para o discípulo de Cristo!

Ponderações Finais da primeira parte

Tendo em vista que Jesus o Cristo é o Senhor de todas as coisas podemos considerar que seus discípulos devem estar atentos aos significados das vozes que clamam na cultura e não apenas isso, deve também falar a língua do povo de forma que seja inteligível. A Cultura, enquanto universo criado de sentido é um ambiente fértil tanto para manifestar, quanto para ouvir a voz de Deus e/ou as inquietações legítimas humanas. O fato do pecado esta presente na cultura não deve nos afastar dela assim como não nos afastamos do mercado de trabalho ou do lazer com a família ou do trânsito etc. Jesus não nos tira do mundo, mas faz de nós discípulos seus nesse mundo, portanto sigamos em frente falando uma língua cada vez mais significativa e ouvindo, vendo e sentindo com cada vez mais sensibilidade e coerência.